segunda-feira, 19 de setembro de 2011

Cisne Negro - psiquiatria e dermatologia

Dra. Márcia Senra

Cisne Negro, o filme, trouxe para nós, dermatologistas, a oportunidade de discutir a interface de psiquiatria e dermatologia. Para quem ainda não viu o drama protagonizado por Natalie Portman (Oscar de melhor atriz , 2011), trata-se da busca obsessiva de uma bailarina clássica pela perfeição. À medida que o personagem avança em direção a essa meta, os limites entre realidade e alucinação vão-se atenuando e levando – platéia e protagonista – a sensações dolorosamente perturbadoras. Nina, a linda bailarina dona de uma técnica perfeita, sofre na pele, literal e metaforicamente, os efeitos da relação traumática com uma mãe psicotizante (veja o trailer).

Pôster do filme
Podemos supor que o trauma sofrido pela personagem  decorre de uma ruptura precoce na infância, e a pele, como órgão vital de comunicação, registra a patologia psiquiátrica.

Na infância, a negligência e os abusos estão associados a sérias morbidades na vida adulta. Depressão, patologias de imagem corporal e tendência a auto-injúrias nos estados dissociativos são frequentes em adultos que apresentam estresse pós-trauma. Há, nesses pacientes, perda de memória, dificuldade de controle do corpo, por exemplo, todos estados inconscientes de dissociação entre corpo e mente, cuja função é a de bloquear a lembrança da situação causadora do trauma.

Não obstante, o  mesmo evento estressor, dependendo da personalidade, do indivíduo, pode produzir resultados muito diferentes. Em outros termos, a mesma semente pode germinar ou não em tipos de solo distintos.

Podemos pensar que naquela companhia de balé, para voltarmos às questões levantadas pelo filme, nem todos os bailarinos, embora submetidos às mesmas condições estressoras irão desenvolver alguma  doença psiquiátrica.

Vale lembrar que nas psicodermatoses, as automutilações são transtornos psiquiátricos primários, ou seja, as lesões são autoprovocadas pela condição mental. A pele, como órgão de superfície, tem um papel simbólico importantíssimo . O dermatologista recebe o paciente com transtornos de personalidade por causa das lesões na pele, seja pela auto-injúria ou automanipulação, que são critérios do diagnóstico do transtorno.

Ninguém – e aí se explica a mobilização em torno do Cisne Negro, quer dizer, pelo drama exposto no filme – fica imune à ocorrência da automutilação. Quem valoriza o ser humano, como qualquer médico consciente, vai se compadecer do sofrimento psíquico do paciente que se automutila.

Muitas vezes, o suicídio é o desfecho dessas morbidades, pois os portadores de transtornos de personalidade são frequentemente vítimas de um atendimento que discrimina a condição de doença psiquiátrica, e também são vítimas de uma rejeição por parte da sociedade. Ou, ainda, vítimas de si mesmos.

Ao final do filme, o cisne negro liberta-se do próprio corpo, saltando para a morte. Não há mais dor, medo, rejeição, pressões. É a  idéia da morte como libertação, como solução.

Hoje, a alta competitividade pode levar nossas crianças velozmente ao encontro de uma sensação de inadequação, de derrota, de baixa auto-estima. Devemos estar atentos ao precoce estabelecimento de metas a cumprir. A liberdade dada a nossas crianças resultará em performances mais equilibradas, em vidas vividas de forma mais imperfeita, mas com um índice de felicidade mais alto.

Cabe ao médico, em nossa perspectiva, ser o protetor do indivíduo portador de psicodermatoses. O diagnóstico preciso, tanto quanto a atenção dispensada ao paciente, revelam uma postura acolhedora, responsável pelo manejo mais eficaz dos casos que exigem delicadeza, comprometimento, além da competência médica especializada.




Dra. Márcia Senra