Cisne Negro, o filme, trouxe para nós, dermatologistas, a oportunidade de discutir a interface de psiquiatria e dermatologia. Para quem ainda não viu o drama protagonizado por Natalie Portman (Oscar de melhor atriz , 2011), trata-se da busca obsessiva de uma bailarina clássica pela perfeição. À medida que o personagem avança em direção a essa meta, os limites entre realidade e alucinação vão-se atenuando e levando – platéia e protagonista – a sensações dolorosamente perturbadoras. Nina, a linda bailarina dona de uma técnica perfeita, sofre na pele, literal e metaforicamente, os efeitos da relação traumática com uma mãe psicotizante (veja o trailer).
Pôster do filme |
Podemos
supor que o trauma sofrido pela personagem
decorre de uma ruptura precoce na infância, e a pele, como órgão vital
de comunicação, registra a patologia psiquiátrica.
Na infância,
a negligência e os abusos estão associados a sérias morbidades na vida adulta.
Depressão, patologias de imagem corporal e tendência a auto-injúrias nos
estados dissociativos são frequentes em adultos que apresentam estresse
pós-trauma. Há, nesses pacientes, perda de memória, dificuldade de controle do
corpo, por exemplo, todos estados inconscientes de dissociação entre corpo e
mente, cuja função é a de bloquear a lembrança da situação causadora do trauma.
Não
obstante, o mesmo evento estressor,
dependendo da personalidade, do indivíduo, pode produzir resultados muito
diferentes. Em outros termos, a mesma semente pode germinar ou não em tipos de
solo distintos.
Podemos
pensar que naquela companhia de balé, para voltarmos às questões levantadas
pelo filme, nem todos os bailarinos, embora submetidos às mesmas condições
estressoras irão desenvolver alguma
doença psiquiátrica.
Vale lembrar que nas psicodermatoses, as
automutilações são transtornos psiquiátricos primários, ou seja, as lesões são
autoprovocadas pela condição mental. A pele, como órgão de superfície, tem um
papel simbólico importantíssimo . O dermatologista recebe o paciente com
transtornos de personalidade por causa das lesões na pele, seja pela
auto-injúria ou automanipulação, que são critérios do diagnóstico do
transtorno.
Ninguém – e
aí se explica a mobilização em torno do Cisne Negro, quer dizer, pelo drama
exposto no filme – fica imune à ocorrência da automutilação. Quem valoriza o ser
humano, como qualquer médico consciente, vai se compadecer do sofrimento
psíquico do paciente que se automutila.
Muitas
vezes, o suicídio é o desfecho dessas morbidades, pois os portadores de
transtornos de personalidade são frequentemente vítimas de um atendimento que
discrimina a condição de doença psiquiátrica, e também são vítimas de uma
rejeição por parte da sociedade. Ou, ainda, vítimas de si mesmos.
Ao final do
filme, o cisne negro liberta-se do próprio corpo, saltando para a morte. Não há
mais dor, medo, rejeição, pressões. É a
idéia da morte como libertação, como solução.
Hoje, a alta
competitividade pode levar nossas crianças velozmente ao encontro de uma
sensação de inadequação, de derrota, de baixa auto-estima. Devemos estar
atentos ao precoce estabelecimento de metas a cumprir. A liberdade dada a
nossas crianças resultará em performances mais equilibradas, em vidas vividas
de forma mais imperfeita, mas com um índice de felicidade mais alto.
Cabe ao médico, em nossa perspectiva, ser o
protetor do indivíduo portador de psicodermatoses. O diagnóstico preciso, tanto
quanto a atenção dispensada ao paciente, revelam uma postura acolhedora,
responsável pelo manejo mais eficaz dos casos que exigem delicadeza,
comprometimento, além da competência médica especializada.