segunda-feira, 22 de agosto de 2011

Toxina Botulínica na infância?

A divulgação na imprensa internacional da notícia da mãe californiana, esteticista, que perde a guarda da filha de oito anos por lhe aplicar toxina botulínica na face e depilar suas pernas com cera para prepará-la para um “concurso de miss infantil” causou “comoção” nos Estados Unidos e inúmeras moções de apoio (ao juiz, obviamente). Mãe e filha apareceram no programa televisivo "Good Morning America", da ABC, defendendo o uso da toxina em competições de beleza. "O mundo dos concursos é muito difícil. Eles julgam tudo e as crianças são duras", afirmou a mãe. "Eu não acho que rugas sejam legais em meninas", disse a garota. Ela admitiu que as injeções em seu rosto, que a própria mãe aplicava, causavam dor, mas disse que havia se acostumado.  Apesar do repúdio imediato que a notícia nos traz, algo parece familiar, em menor escala, àqueles casos em nossas clínicas nos quais a mãe nos procura com a queixa de “celulite” em sua filha de também oito anos. A realização de procedimentos cosméticos em crianças reza o bom senso, é de total inutilidade. Crianças têm que aproveitar o “bônus” que a vida lhes dá sendo crianças...

Photos to Go
Mas o que pensar da pauta que recebo para resposta a uma revista feminina para o público infantil: “As meninas entre oito e 11 anos podem usar maquiagem? Se podem, com que freqüência? Precisa ser produto especial? As cores clarinhas agridem menos? Podem usar adstringentes para remover a maquiagem?”. Ou ainda : “Que conseqüências a aplicação de toxina botulínica e realização de outros procedimentos estéticos em uma criança absolutamente saudável podem ter para a saúde?”, me pergunta a jornalista... De fato, essas perguntas não são de jornalistas e da “imprensa”, que são interlocutores de questões que emergem em uma comunidade ou sociedade. Então a pergunta vem da sociedade. E se pergunta, é porque existe demanda e dúvida. Nossa resposta poderia apontar um erro de premissa, ou seja: em hipótese, criança não pode e não deve usar maquiagem, fazer toxina botulinica, ou qualquer procedimento e pronto. No entanto se na saúde em geral a opinião do médico (ou seja, da “ciência”) já não é mais absoluta, o que dizer em relação às questões do comportamento... Poderíamos ainda especular que a aplicação de toxina botulínica com fins cosméticos pode não fazer bem às crianças porque elas ainda têm o sistema neuro/imunológico em desenvolvimento e etc, etc.


Acredito que a resposta a essas questões deva ser um pouco mais abrangente do que o repúdio a essa mãe (“louca”, diríamos de modo simplista) e deva buscar analisar duas questões elementares: Onde (vive essa criança)? Quem (é essa mãe)?  Essa criança vive em uma sociedade que tem por costume glorificar e “espetacularizar” seu show e que por ser mais rica torna mais evidente essas distorções. Sendo ícone da sociedade pós-moderna, de consumo em larga escala, é manifestação mais caricata de sua prima pobre (nós mesmos) em sua dificuldade de aceitação de tradições e cultura próprias. A globalização complicou bastante a questão da identidade das nações e o bombardeio dos meios de comunicação contribuiu para uniformizar tudo e todos, e tornar ainda mais difícil a busca da identidade do sujeito. Podemos dizer que vivemos em tempos de histeria social, uma vez que o histérico fala por meio de seu corpo, sendo esse seu instrumento de linguagem e comunicação. Devemos ter um corpo perfeito para que nossa “inclusão social” aconteça.



Partindo dessa idéia, lançamos um olhar sobre a mãe que sem identidade própria, projeta em sua filha seu desejo. A garota faz muito bem o papel da boneca falante e claro, sente “prazer” em assumir esse papel... Entre nós quando crianças, o concurso era de fato com nossas bonecas e a aplicação de toxina botulínica ficava na esfera da imaginação. Aí o que temos é uma mãe com uma boneca viva e com respostas reais onde podem ser projetadas todas as angústias e frustrações dessa mãe em relação ao seu tempo e espaço vazios. A mãe projeta a perfeição construída em sua filha e transfere para ela a angústia de perder o “concurso”. Na verdade quando a filha concorre, a mãe tenta (novamente) vencer o seu próprio concurso enquanto indivíduo e buscar uma identidade.  Assistimos a uma brincadeira pueril entre mãe filha, onde na realidade ambas estão brincando de bonecas visando ganhar “o concurso”. Mas além do puritanismo comovido que pune exemplarmente sua Medéia, há exemplos onde a transferência para a criança ocorre de outra forma contribuindo para diferentes jogos com os adultos. O sensacional filme “Pequena Miss Sunshine” satiriza de forma inteligente e sarcástica os concursos de beleza infantis. Nele quem projeta sua personalidade na criança é o avô pervertido e erotizado. O filme nos traz um final surpreendente e divertido, mostrando o quanto as crianças têm sua identidade ainda plástica e susceptível à “moldagem” por relações significativas (familiares ou não).  Considerando esse aspecto plástico na formação da criança, podemos compreender que são fundamentais para a construção de uma identidade própria, as influências do meio em que vivem e dos valores que lhes são transmitidos. Para as crianças pode ser muito agressivo e violento viver em ambientes onde o maior valor seja a beleza e a perfeição física. As crianças vão perceber esses valores quando observam que seus pais vivem “fazendo uma dieta” e passam horas na academia moldando um corpo perfeito, e que, ainda assim estão insatisfeitos com seu corpo. Ou sendo vítimas, numa espécie de “bullying familiar” de seus pais que estão continuamente apontando seus “defeitos” ou “sem querer” as comparando com uma irmã ou irmão que lhes pareça, ou seja, de fato mais belo, estabelecendo assim, uma relação de depreciação com a criança. Esse ambiente pode propiciar a formação de crianças tímidas, perfeccionistas e com baixa auto-estima. A fatura chega com a puberdade quando quem recebeu essas referências, vai começar o trabalho de construção de seu lugar na sociedade. E aí vai talvez seja necessário lidar com alguns sintomas que podem surgir em função desse ambiente referencial tais como a bulimia, a anorexia e o transtorno dismórfico corporal.


E nosso papel nessa história? Cabe a nós o difícil papel de tentar interditar essa mãe/pai (“loucos”), onipotentes em relação à sua prole, a quem desejam destinar “o melhor impossível”.  Seguramente seremos ineficazes atuando como juízes severos e autoritários, afinal há por aí outros juízes menos rígidos...  A eficácia de nossa intervenção talvez esteja na medida de um discurso suave, discreto e sem julgamentos, buscando um ajuste do bom senso para esses pais. Mas acredito que, principalmente, recebendo de forma tranqüila a angústia da “culpa” de não promover o melhor impossível. Apontar que seus limites devem estar dentro do possível e que podem fazer com que suas crianças tão plásticas, acreditem que “rugas em crianças são legais”, porque não existem, diferente do Papai Noel...